Estas roupas que já não nos servem - o devir anartista de Carlota Lagido.




O corpo que se dá a perceber à sexualidade, em abstracto, não é organismo, mas coisa em tudo semelhante a figurino. Podemos observar o corpo como edificação composta por vários tecidos que vivem em simbiose e que se interpenetram. No sexo somos revestidos por outros panos que se misturam com os nossos e compõem diferentes roupagens, uma boca que me cobre ou despe, órgãos sexuais que se forram reciprocamente para criar outras topografias, nas quais nos podemos perder durante uma vida, e em que o corpo se transforma em algo que já não nos pertence, em território, rolo de tecido pronto a ser trabalhado, sem que lhe possamos atribuir qualquer funcionalismo. O erotismo da indumentária penetra nesse mistério do desejo  que nunca se satisfaz porque não é apetite mas vontade de sentir, desejo de desejar, que envolve o indivíduo e dá forma à ficção do sujeito senciente. O vestuário corporal é em tudo semelhante às roupas que antes de dormir deixamos caídas aos pés da cama, ou das quais, por fim, nos libertamos ao adormecer para sempre. 

 Para chegarmos à sala de estar de Carlota Lagido fomos guiados por pegadas em forma de vestes abandonadas, como peles de serpente perdidas num estranho caminho, entre máquinas de costura.  Eis que o espaço cenográfico da identidade individual se assemelha à velha casa assombrada por várias mortes, que nada mais são do que marcas de guerra e revoltas de libertação. Carlota é a serial killer. A sua vítima mais antiga, a bailarina clássica, foi roupagem muito apertada que não aguentou os tecidos voluptuosos das formas corporais em crescente despertar. A esta ideologia opressiva pegou fogo, queimou-a viva, mas não para a destruir. O incêndio acabou por transfigurar a imagem hirta deste  organismo ideal romântico e desvendou, ao derreter, a nova coreografia nascida da destruição: Carlota assiste ilesa, do lado de fora de si mesma, e descalça de tais sapatinhos de cimento. Mais tarde matou a diva loira, outro monstro do pesadelo erótico misógino. Percebemos que no momento em que o corpo se decompõe, e se vê habitado por movimentos misteriosos, nasce a diferente coreografia que se revela na dança da morte, e existe na transcendência material, onde outra vida se apodera das formas. Assim acontece também com a morte da arte, ao fingir viver através da decomposição do seu cadáver, noutros movimentos, que não são apenas os dos vermes a devorar as carnes que restam. 

 Com o modernismo e movimentos subsequentes, observamos a velocidade do processo de apropriação e deterioração de tudo o que emerge no campo artístico, ao ponto de a “superação” ou o “novo”, como valor, se converterem na característica capital da arte. Que essa celeridade tenha como fundamento o progresso da plutocracia, e a sua contínua necessidade de mercadorias, já muitos denunciaram. A categorização das actividades artísticas, em géneros e subgéneros, persiste como o sintoma mais comuns da redução da prática a mero produto do mercado de arte. Assim, o que seria a acção envolvida na crítica à instituição “arte” acaba também por se tornar  género, como tantos outros, facilmente superável. Todavia, na apresentação do seu trabalho, Carlota demonstra que esse poder excitante da libertação crítica não se pode desligar do confronto com algo oposto: a força antagónica da inibição e do peso do passado. Eis porque surgem os espectros de múltiplas vestimentas apertadas, aparições de genocídio e retrocesso. Conforme se descalçam as metanarrativas, são exumados os respectivos corpos ideológicos: da Pin-up Nazi às touradas que deambulam por qualquer urinol de caserna, onde fantasmas de mulheres objecto servem de isco a gado para canhão. Carlota fez com que estas indumentárias, que já não servem, fossem vestidas de novo por Mariana Tengner, de forma eloquente, para não esquecermos nem perdoarmos a quem criou as múltiplas torturas da identidade imposta.

Enquanto a arte está ligada a representações vitalistas, o sentir cortante da abstracção acaba por ser a arma de outro crime, e assim, sarcasticamente, poder-se-ia prescrever cursos de dança a quem sofre de ejaculação precoce: os criadores que tiveram a sorte ou azar de ter algum mestre ou mentor, sabem que a sua imagem mental pode ter o  poder inibitório mais eficaz de todos. É através  destes, e doutros limites protocolares, que Carlota perscruta o modo de ser da coisa para além da ideologia da arte: o sem nome, daquele que foi apanhado e ficou preso, sem querer, no papel do artista. De facto é necessária muita lucidez, honestidade e até inocência, para nos tornarmos anartistas, para nos tornarmos coisas. Nesse processo já não há lugar para o oportunista que apenas visa objectivos pessoais ou comerciais, que faz planos e instala intrigas, que se esconde nas pregas de ocultas intenções, mas também não há lugar para o sujeito astuto que renunciou a ter vontade própria, para ficar em sintonia com o real, que se obnubilou para aprovar incondicionalmente tudo o que acontece, que se tornou ninguém para proclamar sempre vitória. Carlota Lagido, a anartista que se sente coisa, conseguiu, na sua sala, a felicidade de transgredir a herança que a representou como figurinista, génio, mulher, diva, espectadora, coreografa; porém, essa desobediência não parece fiel ao movimento de renovação paradoxal, de excesso e ultrapassagem imposto desde o iluminismo. Como “coisa” tem a capacidade de subverter a sua própria condição e  indumentária de criador, por isso é que pode abrir as portas da sua identidade sem receio de estranhos, e subverter o cerimonial da representação e do espectáculo. Isto permite que sejamos convidados à terra de ninguém, onde já não existem actores nem espectadores, mas apenas a confissão de múltiplos homicídios, o espaço neutro complementar ao movimento de apropriação libidinal dos opostos, que certo dia conduziram Sade e Masoch a erotizar o sofrimento.
Carlota Lagido convidou vários cúmplices para povoar o local do crime, isótopos da constelação de correlações elegíveis.  Andrea Brandão confrontou duas descrições narrativas do seu trabalho: a pessoal e a institucional. Confessa numa carta a exaustão e o absurdo do périplo cansativo pelas organizações artísticas, residências, cursos, concursos e exposições. Decide posteriormente mostrar o contraste de outro retrato seu, desta vez ideal e exterior, presente num artigo de revista de arte, uma suposta crítica. O ridículo da retórica balofa do texto instala-se, a denunciar o mal estar, proveniente do filtro publicitário acéfalo submetido à apologética mercante. Por momentos nem tem coragem de ler o que está escrito, é quase a sua sentença de morte. De seguida denuncia a adversidade do trabalho de sobrevivência, como modelo nu, compondo por fim o retrato possível. Em tudo isto há de novo a demonstração da subjectividade coerciva da “profissão” de artista, local inóspito,  habitáculo artificial fechado em auras, agonizante. Andrea Brandão descose esta veste que não lhe serve, também quer ser coisa, outra coisa.
Pelas imagens e vídeos de André Uerba somos levados para diferentes salas, sótãos onde se guardam objectos esquecidos, corpos que se mostram para desaparecer.  É também o corpo "coisa" (nem sujeito nem objecto) onde é fácil perceber o paradoxo entre a exteriorização, a alienação implícita enquanto objecto artístico, por um lado, e o recolhimento sobre si inerente à noção de identidade individual. Torna-se claro que, para entrar no território anónimo e impessoal do corpo coisa, é preciso saber dizer “faz de mim o que desejares” e ser transportado pela irresistível exaltação, inerente à transformação do sujeito quente e vivo em ente estático e petrificado. Só aí vemos que a ausência, o mutismo e a exclusão não são menos ásperos e amargos que o exercício infindo de arquitectar, ordenar, prender e sujeitar, esmagar e percorrer as regiões indefinidas da presença corporal, de as dominar como roupas arrumadas no armário, sobre as almofadas do sofá de casa, ou dentro do saco das compras.
Por fim Miguel Bonneville apresentou em vídeo o desenho da hipérbole desta sala de estar, a dança post-mortem de Carlota transfigurada em ratazana moribunda. Neste exercício Bonneville abandona a ironia conceptual dos trabalhos anteriores, e surpreende pelo agudo sentido sarcástico. O seu trabalho de ficção autobiográfica é travestido do avesso, desta vez como deliciosa encarnação de esgoto, que retrata a arte de fruir sempre, de encontrar o próprio gozo em qualquer  forma de estar ou condição, de identificar inúmeras oportunidades de voluptuosidade nos tormentos, no ódio ao outro, no suplício das relações afectivas ou da rejeição. Talvez aqui seja igualmente preciso cancelar o maiúsculo Id, e poder dizer “Tu” também sobre si mesmo, tornando-se tão estranho à própria identidade como em relação a ratos em coma que se podem manipular e espancar.
O que resultou deste encontro foi mais do que a soma das fracções, as obras constituíram o plano de fundo, e contrariaram a representação, ao servirem de suporte à presença dos seus criadores. Surge aos nossos olhos um objecto novo, inesperado, que possibilita a partilha semântica de todos os intervenientes e que os reforça mutuamente. Aqui não nos foi imposta nenhuma vontade, não estamos perante performances, não temos que obedecer a qualquer projecto, caminhamos para estar finalmente livres de todo o vínculo aos costumes do espectador. Para além do pano podemos talvez ir beber um copo, falar de outras coisas ou ignorar tudo isto.

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